José do Carmo Silva Filho. Esse é o nome de um dos principais
personagens do futebol pernambucano, que marcou época com a camisa do
Santa Cruz e também fez história no Vasco, onde sagrou-se campeão
brasileiro de 1989. Batizado no mundo da bola como Zé do Carmo, o
volante era chato quando jogava profissionalmente. "Bocão" por natureza,
o ex-volante gostava de "apitar" a partida, indo para cima do árbitro
para inibi-lo e desestruturá-lo. Tudo pela vitória de seu time.
Atualmente, ele é auxiliar técnico do América-RN. Nos intervalos dos
treinos da equipe potiguar, nos vestiários com os atletas, no papo com
os jornalistas, as inúmeras histórias de mais de uma década correndo
atrás da bola vêm à tona. As risadas chegam à velocidade em que os
causos são contados. Em um sempre lembrado por Zé, um clássico entre
Sport e Santa Cruz, ele é protagonista.
O ano era 1987. Durante a decisão do segundo turno daquele
Pernambucano, Zé do Carmo passou dos limites. De tão chato, de tão
bocão, o então capitão coral decidiu terminar o confronto bem antes dos
90 minutos. Foi na base do aqui eu mando, aqui eu faço. E tudo começou num pênalti marcado contra o Santa.
- Aos 35 do segundo tempo, estávamos perdendo por 2 a 1 na Ilha do
Retiro, com dois jogadores expulsos, quando o meia do Sport, Robertinho,
partiu para cima da nossa defesa, em alta velocidade. Ele era rápido e
habilidoso e acabou dando dois dribles em mim. Fiquei possesso, "com
sangue nos olhos". Quando foi me dar o terceiro, não tive dúvida: meti
um chute no joelho dele. Sabia que estava dentro da área, mas ia deixar
Robertinho me dar o terceiro drible? Eu não.
O árbitro Oséias Gomes marcou a penalidade com firmeza. Depois, foi na
direção do capitão do Santa Cruz e deu o segundo cartão amarelo, seguido
do vermelho. Expulso, Zé do Carmo ficou inconformado e viu seu time
afundar na partida, agora com três atletas a menos. Gomes já havia
tirado dois tricolores da partida (os zagueiros Ivan e Lula) por conta
de jogadas violentas, e os ânimos estavam fervendo dentro do gramado
(Lula chegou a ser carregado pelos policiais, já que não queria se
retirar do campo). Ainda por cima, o Santa Cruz tinha sofrido a virada
com o ponta-direita Edson abrindo para os visitantes, enquanto Éder e
Ademir Lobo mudaram o placar a favor dos rubro-negros.
Com tantas desvantagens, Zé do Carmo lembrou que a goleada de 5 a 0
aplicada pelo mesmo Sport na temporada anterior poderia se repetir. Após
o pênalti, o ex-volante pensou que não restava outra alternativa a não
ser acabar com o jogo e evitar outra humilhação.
- "C#$&*, tu me expulsaste? Tá certo, foi pênalti claro, mas não
sossegaste com isso e ainda me mandaste o vermelho?", disse para o juiz.
Aí continuei xingando e prometi. "Eu estou expulso? Então está bom,
acabou o jogo." Dei as costas e saí com tudo em direção aos jogadores.
Oséias Gomes era um árbitro educado, não tinha o costume de revidar com
palavrões. Assim como havia calculado que o Santa Cruz acabaria
goleado, Zé do Carmo também fez outra conta: a de que a regra proíbe a
continuação da partida quando uma das equipes só conta com seis
jogadores. Após a expulsão dele, os tricolores só estavam com oito em
campo.
- Cheguei no Rinaldo, que comia uma pilha danada, e soltei: "Rinaldo,
rapaz, a gente vai levar outra goleada. Está 2 a 1 e eles vão fazer o
terceiro, o quarto, o quinto... Já levamos uma "enfiada" desses caras.
Se formos goleados de novo, estamos lascados.
- É mesmo, Zé! Esse cara vai lascar a gente, e se brincar não vão pagar
o dinheiro do bicho. Juiz, você é um filho da..... - disparou Rinaldo,
"engolindo corda", partindo para cima de Oséias Gomes e levando mais um
vermelho para o time coral.
Daí em diante, os jogadores corais formariam uma blitz orquestrada pelo
capitão do time, Zé do Carmo, que fez de tudo para não deixar o Sport
cobrar o pênalti. Com sete em campo, bastava apenas mais uma expulsão
para terminar o jogo. Foi quando partiu para cima de outro companheiro
tricolor para dar o xeque-mate.
- Em seguida, fui até Luís Oliveira, que tinha entrado no lugar de
Dadinho, com o mesmo discurso. "Pô, Luís, a gente não vai ganhar o
dinheiro do bicho mesmo, manda ele tomar no..."
- É mesmo, Zé... "Juiz filho da... Vai tomar no..." - disse Luís
Oliveira, empurrando o juiz e encerrando a partida por ser o quinto
tricolor expulso.
Nesse momento, a crise no gramado era grande. A Polícia Militar estava
preparada para apartar a discussão, mas Oséias Gomes tentava controlar a
situação do jeito que dava. Enquanto a torcida do Sport xingava,
chamando os corais de "timinho", Zé do Carmo ainda tentou finalizar o
levante tricolor com mais um toque de mestre.
- No meio da área, olhei para o goleiro Birigui, o inflamei da mesma
forma com um diferencial: "Birigui, toma a bola das mãos do juiz e manda
para a arquibancada." Não teve dúvida, ele foi xingando Oséias Gomes,
roubou a bola do árbitro e mandou uma bomba para a torcida do Sport.
Mas não precisava. Após o chutão, o árbitro deu fim ao jogo. O goleiro
nem foi expulso. Com seis jogadores do Santa Cruz em campo, a regra já
impossibilitava a continuação da partida. Com o intuito de proteger
Oséias Gomes, a PM o cercou. O caos estava instalado. Era tudo o que Zé
do Carmo queria: sem goleada e com o juiz sem controle do campo. O
volante voltou para ele e disparou.
- Olha aí, babaca, eu não disse que ia acabar com o jogo? Toma aí.
Segundo Zé do Carmo, o árbitro ficou vermelho e gritou dizendo que ia se vingar.
- A veia do pescoço dele começou a saltar, olhou para mim com ódio e
disse que ia colocar tudo na súmula e o tribunal ia cuidar de mim. Como
era muito educado, só ficava falando "seu indisciplinado, maloqueiro,
saia daqui. Você vai ver" - lembrou, aos risos, Zé do Carmo.
Hoje avesso ao mundo futebolístico, Oséias Gomes é um senhor aposentado
que tem uma farmácia no Recife. Mas abriu uma exceção e conversou
rapidamente sobre o episódio. Lembrou que não tinha muito o que fazer,
já que a situação estava prestes a escapar de seu controle.
- Eu sabia que aquilo era coisa de Zé do Carmo, mas fui forçado a
entrar na dele, pois estava uma bagunça. Os jogadores do Santa Cruz me
xingavam e empurravam. Mesmo que eu não quisesse entrar na do Zé do
Carmo, não dava. Tive muita raiva e relatei tudo na súmula. Anos depois,
encontrei com ele e demos risadas sobre isso.
Oséias Gomes botou a história na súmula, e Zé do Carmo foi julgado.
- Teve a polêmica natural do pós-jogo. Dias depois, fui ao tribunal
desportivo. Levei uma dura de todos os auditores, mas só peguei um jogo.
Isso mesmo, um jogo! Viu só... Perdemos por apenas 2 a 1, levei um
gancho pequeno e ficou por isso mesmo. Se fosse no futebol atual, com
câmera em todos os cantos, eu estaria lascado.
Folclórico, Zé do Carmo disse que ninguém o questionou quando ele
soltava ordens para tumultuar o jogo. Nem mesmo o técnico Abel Braga
(hoje no Fluminense), que observou tudo da área do banco de reservas.
- Não tinha como os caras não aceitarem o que eu dizia, porque
estávamos lascados. Além disso, eu era o capitão do time, mandava
naquilo ali. Eu agitava mesmo, e Abel não tinha o que falar não, pois
quando é "acabou o jogo”, é acabou mesmo. Ponto.
Agitador autoproclamado, Zé do Carmo dava trabalho aos árbitros,
desestabilizando várias partidas durante a sua carreira, diferente do
atual Zé do Carmo, auxiliar técnico do América-RN. Pelo menos, segundo
ele. Mais maduro e controlado, hoje recrimina algumas atitudes do
passado, mas não descarta repeti-las, se necessário.
- Eu era muito chato, abria o bocão... Se deixassem, eu apitava o jogo.
E quando o meu time estava perdendo, virava peladeiro e criava algum
inferno para o árbitro. Hoje, sou de comissão técnica e aconselho os
meus comandados a não fazerem isso, pois é coisa de outros tempos e não é
a melhor atitude a se tomar. A não ser que a situação esteja muito
crítica, aí vale um tumulto para aliviar a tensão - disse, rindo das
suas peripécias.
Ao fim de tudo, o Santa Cruz perdeu o jogo, o título do segundo turno,
mas acabou conquistando o bicampeonato pernambucano. Naquela época, a
competição era dividida em três turnos. O Tricolor venceu dois deles e
ficou com a taça.